Em um dos seus poemas, Affonso Romano de Sant’Anna diz que não está nada fácil ser poeta nestes dias, no entanto, demonstra-se incansável: contempla, faz, do cotidiano, poesia; trabalha, insere a poesia no cotidiano. Autor de poemas que marcaram época, como Que país é este?, Affonso Romano reuniu poetas em plena ditadura – na Expoesia-PUC/RJ; criou a revista Poesia Sempre; produziu poemas para rádio, televisão e jornais; instituiu o Sistema Nacional de Bibliotecas e o PROLER (Programa de Promoção de Leitura), demonstrando que, como já disseram, tem a capacidade de fazer, da palavra, ação. Nesta entrevista concedida por e-mail à Presente!, o poeta, professor, cronista, ensaísta, enfim, um artista que rompe muralhas, versa sobre a superficialidade da cultura contemporânea, o embrutecimento dos sentidos, o imperativo do homem em “aprender a ler o mundo” e, como um autêntico criador de metáforas, instiga-nos a exercitar o “terceiro olhar”.
Presente! – O título do seu livro – A cegueira e o saber – parece andar na contramão de conceitos estabelecidos, já que o conhecimento normalmente é associado à possibilidade de ver mais, à ampliação do olhar... É esse o objetivo?
Affonso Romano – Os seis primeiros textos do livro explicam isso. Recorro a uma série de mitos, de Édipo a textos mais atuais como o de Saramago, Ensaio sobre a cegueira, para explicar o que se passa com a chamada cultura contemporânea. Um dos nossos problemas é que vivemos na época da hiper-visualidade – TV, anúncios, Big Brother, mistura da vida privada com a pública, escândalos políticos, eróticos, “Caras”, culto às celibridades, - no entanto , nessa época do visual, estamos cegos. Daí a epígrafe que uso: “Somos em verdade uma raça de cegos e a geração seguinte, cega à sua própria cegueira, se assombrará com a nossa” (L.L. White).
Presente – É a própria hipervisualidade que provoca a cegueira?
Affonso Romano – Ela é o sintoma de algo. Ela não vem sozinha. Há um conjunto de fatores que estão embrutescendo os sentidos, poluindo a audição e os demais sentidos. A cultura contemporânea empurra tudo para a superficialidade, para o mercado, para a aparência, para o brilho fácil, o lucro imediato. Finalmente a sociedade de consumo conseguiu sua glorificação: o que interssa é a quantidade. Qualquer jovem quer ser “celebridade”. Os artistas se improvisam, porque decretou-se (equivocadamente) que qualquer um pode ser artista. O que é uma falácia da modernidade.
Presente! – Parece que mais importante que ver é ser visto. Concorda?
Affonso Romano – De fato. A cultura das “celebridades” (isso é insuportável) e da aparência leva àquilo que também examino neste livro e que interessou a tantos professores – a geração “tipo assim”, que é essa garotada entre 12 e 18 anos que sai para a night e não tem pouso fixo (sempre o deslizamento de significados), fica zanzando nos postos de gasolina ou de danceteria em danceteria e disputa quem vai beijar mais gente numa noite. Os garotos e garotas beijam 15, 20 pessoas, como se fosse uma olimpíada. E, quando beijam, estão olhando para a próxima pessoa a ser beijada. Querem ser vistos beijando. Isto é um sintoma analisado já por duas sociólogas (Noites Nômades – Ed. Rocco, de Maria Isabel Mendes de Almeida e Kátia Maria de Almeida Tracy). No mais está todo mundo querendo ser manequim e artista global. Triste.
Presente! – Como nós, humanos, enxergamos?
Affonso Romano – Há que aprender a “des-ver” e “re-ver”, enfim, pôr em função o “terceiro olhar”. Ser um excêntrico no sentido epistemológico do termo. Sair da manada. Assumir o seu discurso, a sua linguagem e não a linguagem ou ideologia da moda. A atual cultura contemporânea, em grande parte, está interessada na aparência. E a aparência é apenas parte de um todo, não a totalidade. Acresce que a ideologia que enfatiza o “fake” a “apropriação”, “ o pastiche”, cria uma armadilha para si mesma. É como narciso apaixonado pelo reflexo, pelo falso eu. O artista autêntico vai além disso, supera esses “sintomas” de época.
Presente! – porque o Senhor diz que “ver é uma ousadia”?
Affonso Romano – Ver, por outro lado, é sempre arriscado. Veja todos os mitos referidos em A cegueira e o saber. Aquele que denuncia o embuste, o que diz que o rei está nu, o que não pactua com a cegueira geral, corre o risco de ser expulso da corte. Aliás, não é de hoje que expulsam o poeta da república. Foi assim desde Platão. Neste meu livro cito até uma epígrafe, na fala de Milan Kundera e Zygmund Bauman, que repõe a questão em termos modernos. Milan Kundera comenta : “Escrever significa para o poeta romper a muralha atrás da qual se esconde alguma coisa que sempre esteve lá (...) Para elevar-se a essa missão, o poeta deve recusar servir verdades conhecidas de antemão e bem usadas, verdades já óbvias, porque trazidas à superfície e aí deixadas a flutuar. Não importa que essas verdades “supostas de antemão” sejam classificadas como revolucionárias ou dissidentes, cristãs ou atéias – ou quão corretas e apropriadas, nobres e justas sejam ou tenham sido proclamadas. Qualquer que seja sua dominação, essas ‘verdades’ não são as ‘coisas ocultas’ que o poeta é chamado a desvelar; são antes parte da muralha que é missão do poeta destruir”.
Presente! – Se estamos cegos, o que fazer para enxergar?
Affonso Romano – Não é fácil. Quem tem olhos veja, diz a Escritura. É preciso aprender a ler o mundo, decompor os sinais, entender o sentido (ou múltiplos sentidos). De algum modo, a maioria hoje é composta de “analfabetos funcionais”. Não lêem. Ao contrário, são lidos pelos acontecimentos, são objetos passivos, mas deveriam ser sujeitos da sua própria história. Em a cegueira e o saber falo da versão que Alberto Moravia oferece para aquele episódio na Odisséia em que Circe teria convertido os marinheiros de Ulisses em porcos. Não, os marinheiros se converteram em porcos espontânea e alegremente. Se chafurdavam alegremente. Isso se parece muito com as pessoas que vivem fazendo a apologia do “mal-estar da civilização”.
Presente! – O que vem a ser essa apologia do mal-estar da civilização?
Affonso Romano – Quando analisei, em Desconstruir Duchamp, a arte contemporânea, falando do amor que essa arte tinha pelo sujo, pela coprofilia, pelo caos, pelo grotesco e mórbido, teve gente que veio dizer que era isso mesmo, que a arte tinha que causar mal-estar. Olha, isso não tem nada a ver com arte. Se a pessoa é masoquista, deve se tratar. Arte não tem que provocar mal-estar nem bem-estar. Arte vai além disso, embora possa até causar uma outra coisa. Dizer que a arte tem que “agredir os burgueses” é coisa do século passado. Já deveríamos ter superado essa concepção. Arte é mais que insulto. Ela transcende sempre o presente.
Presente! – A arte oferece oportunidade de ver melhor?
Affonso Romano – Posso usar uma metáfora conhecida: A arte é a janela da alma. Aquela coisa que o Paul Klee dizia, que arte não reproduz, mas torna as coisas visíveis; não fala sobre a realidade, mas é uma realidade a mais. Você não vê o mundo da mesma maneira depois de tê-lo visto pelos olhos de Chagal ou Van Gogh, nem depois de ter lido Kafka ou Clarice.
Presente! – Qual a relevância do estético no cotidiano das pessoas?
Affonso Romano – Queiram ou não, os indivíduos fazem opções estéticas. Fato cristalinamente percebido nas comunidades primitivas – na maneira como fazem desenhos sobre o corpo, como escolhem adereços, como bordam ou fazem cestos. Na sociedade industrial, através de um processo de massificação, surgiu o kitsh, que não deixa de ser uma opção estética. Quando a gente vai namorar alguém, há uma série de exigências estéticas conscientes e inconscientes, que entram em jogo. O modo de arrumarmos nossa mesa, de dispormos os pratos para o jantar, de escolhermos flores, ou até mesmo o corte do pêlo de nosso cachorrinho, tudo passa pela estética.
Presente! – O que importa na experiência estética?
Affonso Romano – Várias coisas.Uma delas é a sensação de que a obra está lhe dizendo alguma coisa preciosa, única, que só ela pode dizer. Diferentemente do produto industrial ou da moda, que apela sobretudo para a quantidade, a arte que leva a estética em conta emociona, espanta, ensina , apazigua, inquieta, enfim, introduz uma perturbação que agrega algo ao seu cotidiano e a sua vida. Há uma coisa na estética, por outro lado, que nenhuma outra disciplina ou saber pode fornecer. E aí é que acontece a arte. Eu diria que há qualquer coisa de epifania (revelação) nisto. Aliás, como demonstrei em alguns ensaios, a obra de Clarice Lispector gira essencialmente em torno dos movimentos de epifania, que seus personagens vão tendo em suas vidas.
Presente! – Diante de tantas outras carências, há quem questione a importância da arte, da poesia, no cotidiano das pessoas. Se me permite, quero devolver-lhe a pergunta que consta na crônica Jardim também é cultura: “Estamos em pleno clima da “fome zero” e o senhor vem falar de jardins?
Affonso Romano – Quando estava visitando a região do Loire, na França, e tive a sorte de me hospedar no castelo de uma poeta amiga, Nicole Catrice, percorri os belos jardins em torno dos palácios da região. Mais uma vez confirmei coisas que havia assinalado quando estudei o urbanismo e os jardins em Barroco, do quadrado à elipse. O jardim é a nossa intervenção na natureza, na massa bruta. Ademais, tenho até um poeminha que talvez tenha a ver com isso: JARDIM
Meu conceito de jardim
Determina
O que é praga
Ao redor de mim
Presente! – Não está nada fácil ser poeta nestes dias, não é mesmo?
Affonso Romano – Nunca foi. Desde Platão que os poetas verdadeiros são expulsos da república. O intelectual mais exigente consigo mesmo é um excêntrico, um contestador nato. Ou contesta explicitamente ou contesta pela sintaxe, pela invenção. Quem procura a glória rápido, não deve investir em poesia. Ser poeta é escolher o caminho das pedras ou, como diz a Bíblia, escolher a “porta estreita, porque larga é a porta que conduz à perdição”.
Presente! – É possível ensinar a aprender e aguçar os sentidos, a exercitar o terceiro olhar?
Affonso Romano – Sim, veja o texto onde relato a “sensibilização poética” que fiz com alunos de um curso de criação literária na Espanha, fazendo com que descobrissem a poesia no dia-a-dia, seja na fala de alguém, num anúncio, num fato de rua ou de televisão. Temos que desentupir os sentidos, porque a obstrução acontece com os outros sentidos também. Por exemplo, a maioria das pessoas come mal e não sabe que come mal. Estão desperdiçando as sutilezas do paladar. O mesmo ocorre com a audição. Quanto ao olhar, é aquilo que já foi dito: temos que aprender a ler o mundo.
Presente! – Mais do que uma “Pedagogia do olhar”, o senhor está sugerindo uma “Pedagogia dos sentidos”?
Affonso Romano – Claro. Nessa direção, os estudados Levi-Strauss sobre os mitos são extraordinários. Eles mostram como os heróis das sagas são tão mais bem-sucedidos quanto mais abrem os sentidos para decodificar mensagens de perigo em torno de seus passos. Fechamento é morte; abertura é vida.
Presente! – Além, de artistas e escritores como Van Gogh, Clarice e Borges, que nos ensinam a ver, também os professores podem provocar essa “abertura dos sentidos”?
Affonso Romano – Tenho uma crônica usada em vários cursos de pedagogia e lida em formaturas, Desaprendendo a Lição, que trata disso. Roland Barthes havia dito que há uma época em que o professor ensina o que sabe, mas chega outra época em que ensina o que não sabe. Aí é que o curso fica bom.
Presente! – Se (...) só se pode galgar com os pés na poesia, peço pra finalizar esta entrevista, que complete a seguinte frase: Só se pode enxergar...
Affonso Romano - A poesia é uma das estratégias de conhecimento. No outro extremo está a ciência, que é irmã gêmea da poesia. Sou fascinado por livros de ciência que consigo entender. O artista produz metáforas, símbolos. O cientista, fórmulas e modelos. E todos manifestam o pasmo diante do universo.
Por Zulmar Aurélio (maio de 2007)- Revista Presente!
Postado por Bento.